Era um dia de sol, esperado por muito tempo pelo povo da pequena e pacata cidade, que como em toda cidade tinhas ruas e casas numeradas. Os nomes já esquecidos pela memória, só resta mesmo é o número da casa. Setenta. Morava uma família mediana, de classe mediana e que tinha uma garota de quinze anos chamada Mariana.
Adolescente dona de si e da verdade, Mariana passava mais tempo lendo livros de assuntos sensacionalistas de temas polêmicos e que continham história – algumas tão falsas que pareciam verídicas. Era obcecada pelos tabus e então se achava no direito de estudar e discutir o assunto com quem quer que fosse.
Já do outro lado da rua, na casa de madeira que se encontrava em frente a casa 70, morava um senhor que se sentava nos dias de chuvas numa velha cadeira de plástico e odiava ser incomodado pelo “moço” da agua. Vai entender. Que observava sempre a menina passar carregada de livro e o nariz pequeno empinado. Achava aquela garota estranha, com aquele cabelo meio sem forma e aquelas roupas. Achava o que todo mundo achava, e o povo comentava. Lá vai aquela Mariana estranha.
Os pais não reclamavam. Tirava notas boas. Era melhor uma CDF estranha, do que uma vadia drogada. “Mariana. Mariana.” Toda vez a mesma história. Lá ia ela toda confiante para a biblioteca se enfestar de ácaros.
Mariana. Mariana. Ele odiava o burburinho que acontecia toda vez que aquela menina estranha passava pela porta da biblioteca municipal. Menina estupida. Se acha uma pesquisadora e não passa de uma doida que ainda não aprendeu a passar maquiagem.
Uma olhada tímida para o pessoal que trabalhava no seu lugar preferido. Uma olhada medonha para um ser estranho. Menino escroto. Com aquele colar ridículo com uma estrela dentro de um círculo, nem sabe o que significa e já vai usando. Coisa de estilo, coisa de metaleiro brasileiro. Aquele cabelo armado e sujo. Aquele rosto suado devido ao calor das roupas justas e negras.
Mariana já tinha falado com o pessoal da biblioteca, tinha até uma quase amizade com a faxineira. Mas ela não se dirigia nunca ao cara do Xerox. Nem mesmo quando queria uma cópia, ela fazia questão de esperar até outra pessoa vir lhe atender. Não gostava nem uma pouco daquele babaca que se achava. Tem metaleiro que se acha o filho do capeta. E esse aí era um desses.
A garota não era religiosa nem nada, tudo que tinha aprendido nos livros sobre as crenças lhe fizeram ter certo tipo de aversão a temas do gênero.
Era uma coisa inevitável, algum dia a bomba explodiria. E foi naquele dia ensolarado, em que o velho não sentou na calçada para ver Mariana passar, e que o rapaz parecia mais sebento e irritado do que os demais daquele verão infernal . Todos mal-humorados. E a garota cheia de si, deu uma aula para o rapaz do Xerox sobre anticristo e símbolos usados erroneamente.
Fulo da vida, o rapaz do Xerox que odiava livros e ácaros, que trabalhava ali por não ter mais escolhas e que passava todo santo dia com fones de ouvidos, exceto nesse momento. Soltou o que qualquer pessoa sem muito argumento faria: rogou-lhe uma maldição.
- Venderei sua alma ao Diabo! – gritou enraivecido.
Um “Santo Deus!” ouviu-se baixinho. E logo depois um “Shhhh...” geral . Biblioteca não é lugar de discussão.
- Pois, venda! Eu não tenho medo, porque não acredito.
A discussão passou para o lado de fora, lá na calçada. Dois jovens estranhos discutindo assuntos sem fundamento ou lógica.
A garota da casa 70 perdeu sua alma para os livros e o Diabo! Mariana estranha. Em toda casa 70, há uma Mariana que briga com um metaleiro que lhe manda ao inferno.